20 anos de TAV: Paulo Montes

O mundo mudou muito nos últimos 20 anos. Os telemóveis e os computadores tornaram-se essenciais para todos os portugueses. Nasceram as redes sociais. O digital explodiu. E o impacto destas mudanças afetou também o mundo da tradução de audiovisuais.

Contactámos vários profissionais relacionados com a TAV que tenham vivido este período de 20 anos para eles partilharem connosco a sua experiência das duas últimas décadas. Esta semana contamos com a entrevista a Paulo Montes.

Paulo Montes nasceu em 1975. Licenciou-se em Tradução e Interpretação em Línguas Modernas pelo ISLA e realizou uma pós-graduação em Tradução Audiovisual pela UAL. Desde 2000 que é freelancer e que trabalha com empresas de todo o mundo. Entre 2003 e 2008, foi tradutor interno e project manager na Pluridioma. É legendador de informação na redação da SIC/SIC Notícias desde 2011, sócio-gerente da empresa SPELL Translation Solutions e editor full-time de português europeu numa LSP internacional. Está sempre em busca de desafios gratificantes.


Como era o mundo da TAV para si no início do século?

PM: Em 2000, quando entrei nesta área, ou melhor antes disso, quando comecei a pesquisar sobre legendagem, havia pouquíssima informação. Era um mundo fechado. Li tudo o que havia na Internet da época.

Quando comecei a trabalhar, a empresa dava-me vídeos em CD e eu só segmentava e traduzia para ser legendado por eles – não tinha equipamento de legendagem em casa. Esse primeiro trabalho, Os Simpsons, fez-me aprender muito sobre como sintetizar o que seria possível ler naqueles cinco segundos que tinha de contar de cabeça. Imprimia o guião, via o episódio a primeira vez e segmentava com caneta no papel. Passava à tradução em Word, a contar caracteres, resumir, cortar nomes e pronomes e a enfiar 400 legendas em 22 minutos, um absurdo, achava eu na época.

Seguiu-se um rol de séries de animação para a Fox que ainda hoje estão em emissão. A empresa gostou e passei a traduzir Star Trek, mas aí já ia ao escritório legendar nos velhinhos PU2020, com cassetes VHS.

Surgiu o Poliscript, ainda baseado em VHS, mas que digitalizava os vídeos e já não era preciso sofrer com fitas enroladas! Trabalhar sem guião tornou-se muito mais fácil.

Na legendagem para cinema, traduzia sem ver uma cópia do filme, diretamente do guião habitual de cinema, com todo o tipo de indicações e explicações. O nível de atenção à escrita era extremo porque ler é diferente de ouvir uma coisa no contexto. Seguia-se a localização das legendas, diretamente numa moviola, a manusear a preciosa película, num software diferente em cada laboratório. A segurança anti-pirataria na altura era garantida por um segurança que, no caso do Tróia com o Brad Pitt, me levava um rolo de cada vez, sem ser por ordem. Ou seja, nem durante a tradução nem durante a localização vi o filme sequencialmente!

O que mudou nos últimos 20 anos, na sua opinião?

PM: Nos últimos 20 anos, democratizou-se o acesso a software de legendagem – que já não requer equipamento específico – e os cursos de legendagem abundam. Vale pela iniciativa e pelo primeiro contacto dos alunos com este mundo, mas os conhecimentos adquiridos não chegam e é ainda necessária mais formação nas empresas.

Surgiram também durante a primeira década deste século as grandes LSP globais que localizam títulos para várias línguas ao mesmo tempo, o que permite fazer templates. Isso abriu a legendagem a quem não sabe legendar. Infelizmente, estes templates estão frequentemente trancados e não podemos mudar timecodes nem divisões absurdas de legendas – nunca vistas em Portugal e que tornam a leitura muito mais complexa e até esgotante para os espectadores.

Para ser legendador, “basta” usar a plataforma da empresa e traduzir. Infelizmente, esta ideia de que não é preciso ser especializado para fazer este trabalho é nefasta para a qualidade das legendas, para a reputação de quem é especializado e para os preços que nos pagam. A área tem vindo a degradar-se continuamente.

Em 2015, chegaram as plataformas de streaming que operam essencialmente seguindo o modelo do template, mas a maioria dos legendadores continua a trabalhar para grandes empresas agregadoras que dominam o mercado internacional.

Nestes cinco anos, mudou o estilo de tradução, com um rigor que não se via quanto à velocidade de leitura das legendas, com a quase exigência de traduzir coisas que nunca se traduziram, como todos os bordões, yeah, alright, okay e até por vezes interjeições – nada disto essencial para o público português perceber o conteúdo. Passaram a traduzir-se literalmente palavrões – coisa também despropositada e desnecessária, mas exigida quase cegamente. Tudo o que é texto na imagem passou a ser traduzido, chegando ao ridículo de quererem legendar o sinal de Stop e a placa de Exit…

O que prevê para o futuro?

PM: Para o futuro, sendo Portugal um dos países nicho pela reduzida quantidade de falantes, vejo o mercado internacional – mais lucrativo para os tradutores – continuar a ser dominado por LSP internacionais que cada vez mais pertencem a fundos de investimento. Isto acabará por trazer inevitáveis reduções nos valores pagos.

Por outro lado, tem havido uma insistência forte na utilização de NMT (Neural Machine Translation) aplicada à legendagem, mas de todas as experiências em que participei e todos os testes que avaliei, está muito longe de se conseguir uma solução para português europeu. Além disso, essa solução implicaria um investimento enorme em investigação que não me parece que se justifique dado o reduzido número de falantes. Por estes dois fatores, acho que ainda teremos tradutores humanos durante muitos anos, mais na legendagem do que na tradução técnica.

Relativamente ao mercado nacional, e sem querer focar-me só na questão monetária, tenho visto os novos tradutores que chegam ao mercado e se deparam com preços impraticáveis para quem começa, ganhando abaixo do salário mínimo e praticamente sem proteção social.

Da parte das empresas de legendagem – que não têm capacidade negocial – só quando chegar o dia em que tiverem de dizer aos canais nacionais que não podem entregar um trabalho porque não têm quem faça por um valor que não muda há 20 anos é que os canais vão perceber que têm de fazer alguma coisa.

Porém, prevejo, com esperança, o objetivo da ATAV a cumprir-se a longo prazo na regulação da profissão, no esclarecimento dos novos profissionais e na negociação para a melhoria dos preços praticados rumo a sermos um dia como outros países europeus com um número de falantes semelhante ou até menor.


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