Cortes, Supressões e Manipulação – A Censura do Estado Novo na Legendagem

Durante a ditadura em Portugal, desde 1933 até à Revolução dos Cravos, quando o Estado procurou controlar e influenciar toda a produção cultural, também os filmes estrangeiros tiveram de passar pela Censura. O objetivo era evitar a influência de ideias subversivas do estrangeiro, preservar valores como a obediência, o patriotismo, o conservadorismo e a fé e, assim, assegurar a “paz social” no país. O responsável por esta defesa da ideologia do Estado foi o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), depois transformado no Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), em 1945, e renomeado Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT), em 1968, sob o governo de Marcello Caetano. A censura aos filmes cabia à Inspecção dos Espectáculos, um órgão deste ministério.

Muitos filmes nem sequer foram importados, uma vez que as distribuidoras tinham consciência de que a Censura não iria permitir a sua exibição em Portugal. Em casos de dúvida, no entanto, podiam submeter um filme à Censura Prévia. Se os censores* recomendassem não importar um filme nessa fase, as distribuidoras enviá-lo-iam de volta e poupariam as taxas de importação. Em casos de poucos receios de o filme ser rejeitado, as distribuidoras submetê-lo-iam diretamente à censura regular. Havia também a possibilidade de o submeter novamente mais tarde, o que aconteceu com mais de 100 filmes, depois da ligeira liberalização do país, durante o marcelismo. De qualquer modo, antes de entregar um filme à Censura, as distribuidoras poderiam executar cortes no material, para aumentar as hipóteses de o filme passar.

Para as sessões censórias, tinha de ser entregue uma lista de legendas em papel. De facto, na maioria dos casos, as legendas só foram estampadas na película depois de terem sido formalmente aprovadas. Já na fase da tradução, foram suprimidas legendas e foi usado um vocabulário “seguro” – um ato de autocensura, para não provocar o uso do “lápis azul”. Uma vez nas mãos dos censores, as imagens e listas de legendas eram escrutinadas por dois inspetores em cada sessão. Em caso de desacordo, o procedimento era repetido várias vezes, se fosse preciso, até haver um consenso. Depois, escreviam um relatório e anunciavam a decisão final: “aprovado sem cortes”, “aprovado com cortes” ou “reprovado”. Quando um filme era aprovado, as distribuidoras executavam os cortes indicados e, após uma verificação final pelos censores, o filme podia ser lançado.

Embora a Inspecção dos Espectáculos tenha reagido a certas mudanças na sociedade e acontecimentos históricos, dois temas principais foram sempre os mais censurados: o erotismo (ou questões morais, num sentido mais amplo) e a violência. Porém, também o questionamento de hierarquias, da ideologia e ordem política ou de valores tradicionais e religiosos eram uma espinha na garganta dos censores. No caso do filme antiguerra This Land Is Mine (Jean Renoir, 1943, EUA), por exemplo, que retrata um professor que se revolta contra a ocupação do seu país pelos alemães, um censor indignou-se com:

[…] a manifesta apologia, em certos momentos de princípios políticos contrários aos que constituem a base ideológica do Estado português, a apologia da sabotagem da luta clandestina, aos atentados e do chamado “movimento de resistência” que proliferou em França durante a guerra 1939-45; a perturbação de factos históricos para servir a propaganda política de uma parte dos contendores da última guerra e a ofensas dirigidas especialmente a um país com quem Portugal mantem [sic!] boas relações diplomáticas, culturais e económicas […]

(SNI, Inspecção dos Espactáculos, 1953).

Os documentos da Inspecção dos Espectáculos encontram-se arquivados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), em Lisboa. Estes documentos incluem a correspondência entre as distribuidoras e a Censura, os relatórios dos censores e também as listas de legendas com riscos, cruzes, pontos de interrogação e comentários como, por exemplo, “nua” ou “beija-a”. Ao comparar estas listas com o filme original em DVD (o material dos filmes legendados durante o Estado Novo não está acessível), podem detetar-se três medidas censórias: cortes, supressões e manipulação.

Cortes

Os cortes são o principal e mais conhecido método censório. Os censores usavam a lista de legendas para indicar onde as distribuidoras tinham de tirar uma imagem ou cena. No relatório explicavam, por exemplo, “[a]provo para maiores de 12 anos, com corte das imagens em que, na luta entre as legendas 293 e 294, um homem agarra duas garrafas, estilhaça-as para usar como arma de ataque […]” (SNI, Inspecção dos Espactáculos, 1969, referente ao filme Sie nannten ihn Gringo, Roy Rowland, 1965, Alemanha).

Através de um corte, por exemplo, foi invertida a mensagem do filme acima mencionado, This Land Is Mine. Na versão portuguesa falta a última cena do filme: o professor Albert Lory, que tinha sido acusado de resistência aos alemães, foi considerado inocente após o seu corajoso discurso em tribunal, regressa à sala de aulas e começa a dar uma lição sobre direitos humanos aos seus alunos. De repente, a aula é interrompida por soldados alemães que o levam consigo. O filme original acaba com o som do tiro do fuzilamento. Cortar esta última cena por completo significa que a versão portuguesa termina com a absolvição de Lory. A alusão à opressão e injustiça por parte dos alemães, que matam um homem que defende a liberdade, foi eliminada.

Supressões

Muitas vezes, as palavras, e não as imagens, eram consideradas suspeitas, pelo que se suprimiram legendas em vez de cortar a cena toda. Isto significa que o público via as imagens e ouvia a língua original, mas sem tradução. Se as cenas sem legendas durassem demasiado tempo, o público iria assobiar ou gritar na sala de cinema. O que surpreende, na perspetiva de hoje, é que a Censura não se preocupava com o facto de o público poder entender o texto original, pois só uma minoria insignificante é que tinha conhecimento de línguas estrangeiras.

O seguinte exemplo é do filme Madame Bovary (Vincent Minelli, 1949, EUA), que começa com uma cena em tribunal, em que Gustave Flaubert – o autor do romance homónimo – é acusado de ter violado a moralidade e as boas maneiras com a sua novela. No seu discurso de defesa, Flaubert reflete sobre moral e verdade:

Além da tradução bastante “livre”, foi suprimido o questionamento da veracidade da moral e da superioridade da lei que poderia provocar reflexões subversivas no público.

Manipulação

A terceira medida censória, a manipulação, é a mais subtil, visto que as respetivas cenas do filme são legendadas, mas a tradução não corresponde ao texto falado no filme. O que distingue a manipulação de outras divergências entre original e tradução é a intenção. Procedimentos de tradução “legítimas” são sempre usados com o objetivo de transferir o máximo possível do sentido do texto original – mesmo na legendagem, onde razões técnicas e formais nos obrigam a reduzir e adaptar o texto ao espaço limitado. Outra distinção tem de ser feita entre manipulação e erros. Neste caso, a tradução varia, mas não é de propósito. O seguinte esquema ilustra estas distinções:

Os limites entre tradução/adaptação técnico-formal, erro e manipulação nem sempre são fáceis de definir. Em alguns casos, só é possível especular que uma alteração pode ser um caso de manipulação, mas, em muitos outros casos, conhecendo a ideologia e o contexto em que a tradução ocorreu, a manipulação torna-se óbvia, como no seguinte exemplo tirado do filme Das Monster von London-City (Edwin Zbonek, 1964, Alemanha):

Ao longo do filme, a palavra “prostituta” aparece cinco vezes e nenhuma vez foi traduzida literalmente. Esta manipulação sistemática está em conformidade com o facto de que a prostituição foi proibida em Portugal, desde 1963 (Decreto-Lei n.º 44579).

Estes exemplos mostram, portanto, como a ideologia do Estado Novo interferiu com a legendagem. Não só foram cortadas cenas inteiras, mas também foram suprimidas e manipuladas as legendas. De todos os modos, as três medidas eram capazes de alterar ou até inverter a mensagem de um filme.

* A grande maioria dos/as inspetores/as da Censura era constituída por homens, por isso, e também para facilitar a leitura, é usada a forma masculina.

Alguma literatura:

  • Morais, Ana Bela (2017). Censura ao erotismo e violência. Cinema no Portugal marcelista (1968-1974). Famalicão: Edições Humus.
  • Pieper, Katrin (2018). The Claws of Ideology – Censorship and Subtitling of War Films During the Estado Novo in Portugal. In: Transletters International Journal of Translation and Interpreting.
  • Pieper, Katrin (2020). Mulheres, morte e moral: dois filmes censurados no Estado Novo dos anos 1950. In: Maria Lin Moniz, Isabel Capeloa Gil, Alexandra Lopes (eds.), Era uma vez a tradução Once upon a time there was translation. Lisboa: Universidade Católica Editora.
  • Seruya, Teresa e Moniz, Maria Lin (2008). Translation and Censorship in Different Times and Landscapes. Newcastle: Cambridge Scholars Press.

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Katrin Pieper

Katrin Pieper

Katrin Pieper estudou Tradução na Universidade de Leipzig e especializou-se em Tradução Audiovisual. Após a sua graduação, trabalhou como legendadora de óperas, documentários e filmes, antes de continuar a sua carreira como gestora de projetos de tradução para programas da MTV e outros canais de televisão. Desde 2011, vive em Portugal, onde tem trabalhado como legendadora e tradutora freelancer e professora de alemão, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Atualmente, concentra-se na escrita da sua tese de doutoramento sobre censura na legendagem durante o Estado Novo em Portugal, na mesma faculdade.