A Minha Fatia do Bolo – A Complexidade das Tarifas

“Por 1,20€ por minuto fazia muita coisa, mas certamente que não seria traduzir e legendar.”

Vi este comentário num debate num grupo de tradutores numa conhecida rede social, há anos, e nunca mais me saiu da cabeça. Por um lado, demonstra claramente a visão que alguns tradutores de outras áreas, leia-se “técnica”, têm sobre a TAV e a legendagem (note-se que esta situação ocorre antes do advento do streaming, da transição de alguns colossos de software, como a SDL e a MemoQ, para suportarem a tradução de legendas nos seus sistemas e de qualquer hipotético aumento de interesse pelo audiovisual). Por outro lado, levanta a eterna questão das tarifas: porque se fala pouco sobre o tema e qual será a tarifa ideal? A questão não é, quanto a mim, tão simples quanto pode parecer.

 “Sendo colegas, devíamos era combinar um valor e ninguém trabalha a menos do que isso!”

Pensarão alguns… Errado. Há leis anticartelização e concertação de preços que se aplicam a nós por sermos prestadores de serviços, logo temos de conseguir viver num mundo profissional que nos quer como concorrentes, e somos de facto, mas onde temos, devemos até, ser colegas, para coletivamente sermos também mais fortes.

Sabendo que a situação se calhar mais frequente no setor da TAV é a do cliente (seja uma empresa, um canal, etc.) definir o valor que pretende pagar e caber-nos a nós aceitar ou não, a definição da nossa tarifa ideal é tanto um raciocínio matemático como de autoavaliação, senão vejamos:

Somos pessoas, com desejos, vontades e contextos sociais intrínsecos, e a tarifa ideal de fulano pode não ser suficiente para Sicrano ou até permitir que Beltrano enriqueça, pois será diferente suportar uma renda de uma penthouse em Nova Iorque do que um T1 em Beja, não desfazendo nenhuma das duas. Dito isto, nem toda a gente quer fazer a chamada vida de estadão e o que é considerado uma vida desafogada pode variar bastante.

Julgo haver, em Portugal, uma certa cultura de associação de “valor” a “preço”, isto é, um produto caro é necessariamente bom; ideia que acaba por passar para a forma como abordamos a questão das tarifas: a dinâmica de profissionais independentes faz com que sejamos concorrentes pelo trabalho e não tanto colegas de profissão (esta questão dá todo um outro artigo) e nos leve a essa promoção pessoal através de chavões como:

“Eu só trabalho por X euros! Descarto logo o cliente!”.

Aproveito para perguntar: preferem ser bem pagos mas fazer sempre algo que odeiam ou fazerem algo de que gostam, mesmo ganhando menos? Não precisam de responder, mas acho que é uma reflexão que deve ser tida em conta na forma como encaramos o trabalho e o preço cobrado. Sabemos que raras são as vezes em que nos é pedido orçamento (mesmo assim quase sempre à procura da oferta mais baixa) e que, como dito antes, tende a ser o cliente a apresentar o valor que se predispõe a pagar. Sabemos que temos um regime fiscal draconiano e todos temos as nossas contas (e lá está, desejos), pelo que a resposta habitual é aumentar a produção. Neste contexto, não saberá bem aceitar um projeto que adoraríamos fazer, quer por ser baseado numa obra de um autor de que gostamos, numa BD ou até num tema ou género que apreciamos, independentemente de podermos ganhar um pouco menos? É o que apelido de valor incomensurável: o valor por minuto pode ser mais baixo, mas é algo que valorizamos muito para nós, seja por que razão for, e isso não tem mal nenhum.

Além disto, a vida não será só trabalhar e todos temos família, pessoas com quem queremos estar, atividades de que gostamos, passatempos, devemos ter também tempo de descanso e de ócio, para fomentar a criatividade, temos vida além do teclado. Desta forma, e sabendo que o tradutor vende o seu tempo tanto quanto o seu saber, este deve considerar quanto tempo quer reservar para si e o tempo que quer dedicar à atividade, sendo esta outra variante fundamental para o cálculo da tal tarifa ideal. Acrescente-se que, a bem do brio e da qualidade do seu trabalho, fator determinante para a manutenção de clientes, o tradutor deve ser honesto consigo mesmo e perceber de quanto tempo precisa para a realização da tradução e para repouso entre projetos, por exemplo. Perceberão agora por que não considero a questão das tarifas uma questão simples.

Por fim, e quase como nota de rodapé, há que ter em conta que não caminhamos para novos, que a potencial reforma garantida pelo Estado será mais baixa do que o rendimento produzido e que podem surgir despesas, situações inesperadas e acidentes, pelo que idealmente, o tradutor (toda a gente, em boa verdade) deve fazer os possíveis por manter uma pequena poupança para fazer face a imprevistos ou até mesmo para ter mais almofada para o futuro (a ATAV lançou um artigo a referir algumas soluções de investimento para a reforma, que podemos consultar).

“Então como é que devo calcular a minha tarifa ou saber quanto trabalho aceitar?”

Para início do processo, o tradutor deve refletir sobre as suas expectativas e sobre o que pretende para si, tanto pessoal como profissionalmente, somar as suas despesas com base nessas expectativas e acrescentar uma percentagem de margem para poupança ou gastos supérfluos.  Há que definir o número de horas e dias que pretende trabalhar por mês e dividir um pelo outro. A tarifa ideal por minuto é a que permitir cobrir o valor apurado por dia. Exemplo:

Despesas (renda, alimentação, poupança, etc.) = 1000€
Tempo laboral (pressupõe-se o horário laboral convencional de 6-8 horas diárias para efeitos do exemplo) = 22 dias de trabalho
1000/22 = 45,45 euros por dia

Para efeitos do exemplo, a tarifa ideal é a que permitir um rendimento diário de 46 euros por dia de trabalho, o que, para a duração de 40 minutos para um episódio, seria um mínimo de 1,15 euros por minuto. A não esquecer, porém, que deste valor ainda terá de se descontar a Segurança Social e a retenção na fonte para fins de IRS. O resultado seria semelhante ao atual salário mínimo nacional.

Antes que me esventrem, seria certamente consensual uma tarifa por minuto altíssima, de 10€ por minuto, por exemplo, por todos os motivos e todos seriam válidos. Não defendo uma tarifa baixa, antes pelo contrário, uma tarifa mais alta permite que não tenhamos de aceitar tanto trabalho, não se cometam tantos erros e tenhamos mais qualidade de vida, defendo é que não há uma solução que sirva a todos e que não devemos sentir-nos melhores ou piores por fazermos uma série ou episódio por um valor que possa ser considerado ofensivo para um colega, pois podemos ter projetos de vida totalmente diferentes.

Só quando a vergonha da tarifa e a métrica do sucesso pela mesma passarem é que saberemos unir-nos enquanto setor para a promoção do que, no fundo, todos queremos: melhores condições e reconhecimento pelo que realmente somos: artistas.


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Paulo Fernando

Paulo Fernando

Paulo Fernando licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante Estudos Portugueses e Ingleses, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Frequentou uma pós-graduação em Tradução e uma formação em Legendagem e Tradução Audiovisual em 2003/2004. Colabora com algumas empresas de referência, tanto nacionais e internacionais, desempenhando funções de revisão e controlo de qualidade, além de tradução. Gosta de literatura fantástica, algum realismo mágico e romance gótico.

2 thoughts on “A Minha Fatia do Bolo – A Complexidade das Tarifas”

  1. Bom dia, Paulo Fernando

    Já li e reli o seu artigo várias vezes ao longo de várias semanas e tive de fazer o seguinte comentário.
    É verdade que o seu artigo tem mérito, mas parece-me uma visão demasiado simplista do mercado e dos valores praticados.
    Ora, se é verdade que os mil euros (como indica) são uma possibilidade em 22 dias de trabalho, não faz qualquer referência há possibilidade de não haver programas a traduzir para esses 22 dias de trabalho. É possível que seja um mês baixo para as emissoras e as empresas de tradução não tenham 22 programas para entregar a todos os tradutores na sua base de contactos. O que fazer então?
    Outra questão relevante é o próprio valor dos mil euros. Sendo a tradução audiovisual uma atividade praticada por profissionais (ou assim devia ser), mil euros chegarão para levar uma vida confortável, depois de pagar renda, seguros, empréstimos, serviços de casa, alimentação e imprevistos que teimam em aparecer?
    Para quem trabalha na área, a variação nos preços é muito mais provável para baixo do que para cima.
    Dou-lhe um exemplo muito simples: a melhor empresa de tradução audiovisual com que se pode trabalhar em Portugal paga 1,50 por minuto há vários anos, a primeira empresa com que trabalhei pagava 1,40 e baixou para 1,20 numa questão de meses. Porém, ambas têm como mercado a mesma emissora! O que justifica esta diferença de valores? Se fizermos os 22 programas mensais com estes valores (a 44 minutos), chegamos a uma diferença de +/- 285 euros.
    Outro ponto importantíssimo é a valorização da carreira de um tradutor de audiovisuais. Se são as empresas de tradução e legendagem que definem os valores por minuto, qual a diferença no pagamento entre um tradutor experiente com vários anos de atividade e alguém que faz o seu primeiro programa? A propósito da carreira de um tradutor de audiovisuais, podemos também referir que dificilmente sobe na carreira. É verdade que se pode tornar gestor de projetos ou obter um posto de maior responsabilidade numa empresa, mas creio ser mais provável uma evolução lateral do que vertical. Ou seja, fazer tradução para dobragem e não apenas legendagem, traduzir para outros meios que não o audiovisual e afins.

    Este comentário não pretende servir de crítica ao autor do artigo, Paulo Fernando, é apenas um complemento ao que foi escrito.

    Quanto à ATAV, é uma organização que faz falta e “mais vale tarde que nunca”.
    Têm muito trabalho pela frente, desejo-vos força, sorte e coragem.

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