Saber legendar de raiz? Para quê?

Inteligência artificial, GPT-4, neural machine translation, generative IA, templates, transcrição automática, inserção automática de incues e outcues em vídeo através de apps ou de add-ons no browser… A tecnologia é uma faceta incontornável nos dias de hoje e, sendo o setor audiovisual uns dos com maior crescimento dentro do mercado da localização, torna-se apetecível para software developers, que, num esforço de destaque da concorrência, tendem a simplificar a natureza multimodal da tradução para legendagem, equiparando-a à tradução de texto.

Sendo verdade que um tradutor traduz e fará uso das ferramentas disponíveis para realizar o melhor trabalho possível, surgirá agora a questão: para quê saber legendar de raiz, se essa parte do trabalho tende cada vez mais a ser apresentada já pronta pelos clientes?

A primeira vantagem de ter bases sólidas de tradução para legendagem é a aquisição das técnicas, especificidades e idiossincrasias do género, como regras de segmentação e de pontuação e a “ginástica mental” de adaptação do texto quer a indicações não-verbais como a constrangimentos de espaço e/ou tempo. Seguindo esta ideia, o tradutor, mesmo deparando-se com um template, saberá apresentar um melhor produto final ou mesmo sugerir edições ao cliente que melhor adequem a legendagem ao público-alvo, destacando-se assim entre tradutores.

Saber legendar de raiz é também uma mais-valia para o profissional que queira abraçar as vertentes de acessibilidade da tradução audiovisual, como a LSE (legendagem para surdos e ensurdecidos) e a audiodescrição: na primeira, se bem que uma transcrição automática possa ajudar o profissional, todas as indicações de sons relevantes, identificações ou carateres expressivos terão de ser inseridos pelo profissional; na segunda, o que importa verter do que é a imagem para um texto para ser narrado depende ainda totalmente da sensibilidade humana. 

Ao nível do mercado, saber legendar surge também como fator diferenciador perante clientes diretos, caso o profissional seja abordado com um projeto de suporte vídeo, nomeadamente para redes sociais, cada vez mais um veículo importante de publicidade, o cliente normalmente quererá apenas o vídeo visível, sem especial atenção a parâmetros muito rígidos (ao contrário de canais de televisão ou plataformas de streaming) e cabe ao profissional apresentar a melhor solução.

A remasterização ou adaptação de conteúdos antigos (tarefa conhecida como conform, na gíria do setor) requer também conhecimentos de legendagem, uma vez que depreende, entre outras alterações,  o ajuste dos timecodes a um novo conjunto de parâmetros, bem como a prestação de serviços para canais de broadcast tradicional (como os nacionais), em mercados de nicho ou para as chamadas empresas Boutique (ditas pequenas, que trabalham com menos pares de línguas e mais focadas na atenção ao cliente do que em grandes carteiras), uma vez que a expectativa de lucro não justificará o investimento em tecnologia para tradução automática ou o desdobrar da folha salarial para albergar criadores de templates.

Para rematar, um pequeno “piscar de olhos” a outra vertente em que é imperioso saber legendar de raiz: a chamada legendagem criativa ou dinâmica. Não me quero alongar muito, pois acho que o tema justifica um artigo exclusivo, por podermos considerar o papel do tradutor/legendador na pré e pós-produção do conteúdo audiovisual e de que forma realizador e tradutor poderiam “unir forças” em prol de uma superior experiência de visualização, mas pensemos no “Annie Hall”, de Woody Allen, ou no mais recente “O Esquadrão Suicida”, de James Gunn, vejamos como a “legendagem pré-inserida”, à falta de melhor expressão, flui e imaginemos o trabalho incrível que poderia ser feito.

Então, saber legendar de raiz para quê? Para ser melhor profissional no setor audiovisual, se for esse o desejo, e ter mais e melhores ferramentas à sua disposição para destacar a sua marca e propiciar um serviço de excelência.


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Paulo Fernando

Paulo Fernando

Paulo Fernando licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante Estudos Portugueses e Ingleses, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Frequentou uma pós-graduação em Tradução e uma formação em Legendagem e Tradução Audiovisual em 2003/2004. Colabora com algumas empresas de referência, tanto nacionais e internacionais, desempenhando funções de revisão e controlo de qualidade, além de tradução. Gosta de literatura fantástica, algum realismo mágico e romance gótico.