A Saúde Mental dos Tradutores – Um Relato Pessoal

“Em tradução, tudo é possível. Nem tudo é desejável.”

É esta uma das respostas que se podem ler numa publicação relativa à produção diária de um tradutor numa das redes sociais menos populares. Por vezes, na área da tradução audiovisual, acabamos por dar maior importância à questão financeira, a pagamentos e a prazos do que às condições em que o tradutor faz o seu trabalho. Foi por este motivo que entrei em contacto com a ATAV e sugeri um artigo sobre a saúde mental dos tradutores, uma vez que não me parece um tema devidamente abordado pelos vários artigos que se têm publicado (ou, pelo menos, é essa a minha perspetiva, segundo o que tenho lido nos vários anos a acompanhar o que é publicado sobre esta área).

A saúde mental em tradução, apesar de ser uma atividade bastante mais intelectual do que física, não foi uma questão abordada com grande insistência ou atenção nas universidades que frequentei, tanto na licenciatura como no mestrado. Lembro-me, contudo, de um momento em que se debatiam as várias vertentes de tradução e, quando referi que queria seguir a audiovisual, ouvi esta pergunta muito direta e reveladora: “Queres ser pobre?”. Mas a questão dos valores praticados não é o que importa neste artigo, há outra publicação muito interessante no site da ATAV que aborda esse tema.

Passemos agora ao que importa: um relato pessoal da saúde mental em tradução. Enquanto trabalhador independente, para mim, a estabilidade emocional prende-se muito com a segurança profissional, um fator de enorme incerteza nos meus primeiros tempos nesta indústria. Com a falta de feedback e comentários nos trabalhos que entregava, acabava sempre ansioso por saber se receberia mais trabalho daquela empresa em breve. Acabei por perceber que a melhor solução é “não pôr os ovos todos no mesmo cesto”, como diz a expressão, e trabalhar com vários clientes ao mesmo tempo para conseguir alguma segurança nos pagamentos e uma quantidade consistente de trabalho. Pode parecer algo óbvio para os mais experientes, não duvido, mas era das noções que não tinha quando comecei esta atividade. Uma opção que também pode trazer alguma segurança é trabalhar à avença, o que nunca fiz por várias razões, apesar de ter recebido propostas para tal.

Como se tornou evidente em tempos de pandemia, o trabalho remoto acarreta muitas pressões e ansiedade quando se conjuga o ambiente familiar com o profissional. O que podemos fazer então quanto à nossa saúde mental? Em primeiro lugar, e muitíssimo importante, não devemos ter qualquer tipo de complexos em falar deste tema. Uma simples conversa com alguém de confiança pode fazer-nos ganhar uma nova perspetiva e podemos acabar por encontrar uma solução que estava ainda por equacionar. Em segundo lugar, não deixemos de considerar a ajuda profissional, seja de psicólogos ou psiquiatras. Todos passamos por momentos menos bons, profissionais ou pessoais, e uma simples medicação pode fazer toda a diferença. Confesso que fui bastante afetado por esta situação e cheguei a perder um cliente por não me encontrar nas melhores condições físicas e mentais. Neste caso, o contacto é importante e há que esclarecer o que se passa da melhor forma possível. Em terceiro, rotina! Nos meus primeiros tempos de tradutor, estava convencido de que preferia trabalhar à noite, alegando que havia menos barulho e distrações… Demorei demasiado tempo a perceber que há uma boa razão para os trabalhadores noturnos receberem um subsídio de +/- 40%. O trabalho noturno deixa mossas no corpo e acaba por ter consequências logo nos dias seguintes, para não falar a médio e longo prazo.  Na verdade, não estamos a ganhar tempo, apenas a roubar tempo ao dia seguinte. O melhor a fazer é criar uma rotina ou, à falta de melhor, copiar a rotina de outra pessoa com quem se viva. Se sair de casa às 7h para ir trabalhar, o nosso dia também deve começar às 7h. No meu caso, ajuda também ter compromissos diários marcados para certas horas, seja o que for.

Por último, atenção aos pagamentos e despesas. Nesta atividade, o prazo dos pagamentos varia quase de empresa para empresa, ora a 30, 45, 60 ou até 90 (!) dias. Depois de começar a fazer o registo das minhas despesas e valores por receber, senti que os níveis de ansiedade baixaram e pude ter uma maior estabilidade financeira. Uma simples folha de Excel com durações, valores por minuto e datas de entrega é bastante fácil de fazer e simplifica bastante as contas no final de cada mês.

Para concluir, depois de tudo o que escrevi, não pretendo de maneira alguma transmitir ingratidão ou até aversão pela área da tradução, sobretudo pela audiovisual. Pelo contrário, permitiu-me estar envolvido em projetos muito interessantes e confesso que ainda sinto aquela pontada de orgulho na legenda de identificação no final dos programas que traduzo. Porém, creio que muitos podem concordar que há ainda muita margem para melhorias nesta indústria, ou arrisco dizer que corre o perigo de se tornar mais uma vertente da tão atual gig economy e não uma carreira digna e estável, como todos esperam que seja. E não faria mal nenhum se todos os bons profissionais dedicassem tanto atenção e cuidado à saúde mental quanto a que dedicam ao trabalho que entregam.


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Bernardo Rodrigues

Bernardo Rodrigues

Bernardo Rodrigues é tradutor freelance há oito anos, com uma licenciatura na FLUL e mestrado na FCSH. Já colaborou com várias empresas em tradução e legendagem, área onde tem mais experiência, e traduziu também banda desenhada e guiões para dobragem.

1 thought on “A Saúde Mental dos Tradutores – Um Relato Pessoal”

  1. Bernardo, acabei de ler o seu artigo que agradeço. Como professora de TAV, nunca refleti sobre a possibilidade de abordar esta questão com os alunos. Agradeço a sugestão que seguirei.

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